Entre queixas mais comuns estão perda de memória, dor de cabeça e ansiedade; pesquisadores preveem onda de transtornos nos próximos meses e anos.
A aposentada Conceição Moreno, 60, só descobriu que teve Covid-19 por causa de uma dor de cabeça persistente. Ela conta que, a partir de outubro de 2020, as dores se prolongaram por 50 dias seguidos. Por isso, procurou um médico, que suspeitou de Covid longa.
A condição, que também vem sendo chamada de Covid persistente, Síndrome Pós-Covid ou Covid pós-aguda, é caracterizada por sintomas e complicações em longo prazo que se manifestam para além de quatro semanas desde o início dos sinais da infecção pelo coronavírus – e podem se arrastar por meses.
No caso de Conceição, os sintomas da Covid-19 propriamente ditos nem foram notados. Após a suspeita do médico, ela fez um exame de sorologia, que detectou a presença de anticorpos produzidos contra o vírus. A suspeita foi confirmada não só pelas dores de cabeça, mas também pelos sintomas que se seguiram e permanecem até hoje.
A aposentada se queixa de frequentes lapsos de memória. “Se antes eu organizava o pagamento das contas de casa de cabeça, hoje preciso anotar tudo na agenda do celular”, afirma. Conceição também trata uma depressão severa desde dezembro. “Comecei a sentir uma angústia profunda. Não queria sair do quarto, chorava a todo momento, tinha insônia frequentemente. Nem me alimentar conseguia mais, tanto que perdi 5 kg em poucos dias.”
Sequelas neurológicas e psiquiátricas têm figurado no ranking de queixas comuns entre pacientes afetados pela Covid-19, segundo publicações científicas recentes. O médico psiquiatra Rodolfo Damiano, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, cita um trabalho com sobreviventes de Covid-19 um mês após a alta hospitalar, que relatou altas taxas de problemas ligados à saúde mental, como depressão, transtorno de ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático, insônia e sintomas obsessivo-compulsivos diretamente relacionados à infecção pelo vírus.
As doenças neurológicas são aquelas que afetam o cérebro, a medula espinhal ou os nervos, levando a sintomas que podem abranger parte do sistema nervoso ou sua totalidade. Entram na lista todas as formas de dor (como cefaleia e dor nas costas), fraqueza nos músculos, perturbação nos sentidos (visão, paladar, olfato e audição), falta de coordenação, dormência e até acidente vascular cerebral (AVC).
Já os transtornos psiquiátricos envolvem uma grande variedade de condições que afetam o humor, o raciocínio e o comportamento. Dentre os distúrbios mais conhecidos estão a depressão, o transtorno de ansiedade, o estresse pós-traumático e o transtorno bipolar.
Os transtornos psiquiátricos podem tanto agravar quanto desencadear os transtornos neurológicos -- e vice-versa. Apesar disso, os dois problemas não necessariamente estão conectados.
Memória e dor
A perda de memória relatada por Conceição também é uma reclamação frequente de pacientes que tiveram Covid-19, de acordo com o neurologista Diogo Haddad, coordenador do Núcleo da Memória do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e chefe do Serviço de Neurologia Comportamental da Santa Casa de São Paulo.
“A procura por atendimento neurológico cresceu entre pacientes que tiveram Covid-19, que comumente chegam com quadros de dor de cabeça, dificuldade para organizar o pensamento, tontura, vertigem e outros sintomas”, diz.
De acordo com um amplo estudo realizado a partir da análise do prontuário eletrônico de mais de 230 mil pessoas diagnosticadas com Covid-19 nos EUA, 1 em cada 3 pacientes recuperados pela doença apresenta alguma sequela neurológica ou psiquiátrica.
Dentre as queixas neurológicas mais comuns, apareceram lapsos de memória, fadiga e dor de cabeça. O levantamento foi realizado a partir de um artigo publicado recentemente pela revista científica Annals of Clinical and Translational Neurology, que avaliou sintomas neurológicos persistentes e disfunção cognitiva em pacientes não-hospitalizados acometidos pela Covid-19.
Principais sintomas de longo prazo relacionados à Covid-1
Mais ansiosos e depressivos
Em um estudo realizado em Wuman, na China, sobre as consequências de longo prazo da Covid-19 aguda, foi identificado que a maioria dos pacientes (76%) relatou pelo menos um sintoma, de diferentes naturezas. A fadiga foi uma das queixas mais comumente registradas (63%), seguida por dificuldades para dormir (26%) e ansiedade/depressão (23%).
A investigação chinesa também sugere que mulheres são mais propensas do que os homens a sentir fadiga e sintomas de ansiedade e depressão em seis meses de acompanhamento
“Milhões de brasileiros foram infectados até agora, muitos dos quais desenvolveram ou vão desenvolver sintomas psiquiátricos. É possível que o Brasil enfrente uma onda de doenças psiquiátricas nos próximos meses e anos com impacto ainda desconhecido”, afirma Rodolfo Damiano, que é também coautor de uma pesquisa recente do departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo em parceria com a Universidade de Harvard, dos EUA, sobre intervenções de saúde mental após Covid-19 e outras infecções por coronavírus.
De acordo com o levantamento, taxas mais altas de depressão, ansiedade, comportamento suicida e transtorno de estresse pós-traumático foram associadas a pandemias virais anteriores, incluindo SARS e MERS, sugerindo que padrões semelhantes podem surgir com a Covid-19.
“O número de indivíduos diagnosticados com doenças psiquiátricas tende a ser ainda maior se considerarmos que parte da população, mesmo não infectada, vai desenvolver sintomas de estresse e outros males devido ao isolamento social, à carga econômica e ao desemprego após a pandemia”, afirma Damiano.
Pelo o que se sabe até agora, as sequelas neuropsiquiátricas associadas à Covid-19 surgem devido ao acometimento do cérebro pelo vírus, cuja predileção é o sistema nervoso. “O SARS-CoV-19 leva a lesões indiretas ligadas à inflamação da região, ao aumento de coagulabilidade (podendo levar à trombose microvascular) e à tempestade de citocinas, que é uma resposta imunológica excessiva”, acrescenta Damiano.
“Recuperados” da Covid-19
Os especialistas afirmam que a Covid longa requer cuidados multidisciplinares, por um período ainda indeterminado. O estudo americano citado anteriormente estima que 87% dos pacientes hospitalizados com Covid-19 continuam a ter sintomas 60 dias após o início da doença.
“A doença de longa duração é frustrante e debilitante para as pessoas afetadas, com potencial de impactar significativamente a sociedade em geral”, afirma a médica ginecologista e obstetra Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande (PB).
Ela criou um grupo de apoio para pacientes com persistência dos sintomas pós-Covid-19, o @sintomas_pos_covid, após descobrir que estava convivendo com a Covid longa. “Muita gente sai do hospital com a plaquinha ‘venci a Covid-19’, mas, na verdade, boa parte dessas pessoas está longe de ser considerada recuperada”, afirma. Para piorar, os infectados recebem pouca ou nenhuma orientação sobre o que fazer após a fase aguda da doença – e são raros os municípios e hospitais que oferecem qualquer acompanhamento para esses pacientes.
A comunicadora Cacá Filippini, 42 anos, sentiu na pele a falta de orientação por parte dos médicos durante e após sua contaminação. No começo de janeiro deste ano, quando os primeiros sinais de infecção apareceram, ela foi diagnosticada erroneamente como um caso simples de inflamação das vias nasais.
Ela só descobriu que estava com Covid-19 uma semana mais tarde, ao fazer um RT-PCR por conta própria, já sem os sintomas da doença. A paulistana procurou um hospital de referência decidida a fazer alguns exames para checar seu estado de saúde geral. Para sua surpresa, ela precisou ficar internada na UTI devido à descoberta de uma trombose na perna direita, possivelmente ligada ao espessamento do sangue em decorrência da Covid-19.
“Se não tivesse tomado a iniciativa, correria o risco de sofrer uma embolia pulmonar ou até mesmo um acidente vascular cerebral”, diz. Ao voltar para casa após alguns dias, Cacá passou a apresentar sintomas neurológicos: esquecimento, tontura, confusão mental, lentidão de raciocínio, além de dores de cabeça incapacitantes.
“Qualquer barulho me incomodava, até minha própria voz ou o som da mastigação”, conta. Ela precisou ir ao hospital diversas vezes para ser medicada durante as crises e passou a incluir 13 comprimidos à sua rotina. “Minha vida parou: cheguei a me culpar por não conseguir trabalhar, por não estar sendo uma boa mãe, filha, esposa… Fiquei refém das dores, que passaram para várias outras partes do corpo.”
A comunicadora conta que só conseguiu aliviar os sintomas recentemente, após mais uma internação. O motivo dessa vez: a realização de um procedimento de bloqueio de dor que interrompe impulsos sensoriais das regiões do corpo afetadas. “Meu incômodo não desapareceu, mas hoje conseguimos conviver juntos.”