Lei de Abuso de Autoridade, que foi motivo de disputas, manifestações, críticas, idas e vindas, foi aprovada, sancionada, e entra em vigor a partir de 31 de dezembro, quando acaba a vacatio legis da norma.
Em 2019, depois de cinco anos de atuação, a operação Lava Jato sofreu alguns reveses. Foram derrotas tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Congresso Nacional. Em uma delas, a Lei de Abuso de Autoridade, que foi motivo de disputas, manifestações, críticas, idas e vindas, foi aprovada, sancionada, e entra em vigor a partir de 31 de dezembro, quando acaba a vacatio legis da norma.
Havia, na academia e entre advogados, certo consenso quanto à necessidade de elaboração de uma nova lei sobre o tema. A agora revogada Lei 4.898/1965 era considerada ultrapassada por ter sido pensada no período da ditadura militar (1964-1985). As discussões sobre o novo texto são anteriores à força-tarefa de Curitiba, mas foram apressadas mais recentemente.
No dia 24 de setembro, em sessão conjunta, o Parlamento derrubou 18 vetos do presidente da República Jair Bolsonaro (PSL), de um total de 36 que o chefe do Executivo quis impor. A sessão do Congresso foi convocada de última hora pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AM), e ocorreu dias depois de o ministro Luís Roberto Barroso autorizar buscas em gabinetes do líder do governo na Casa Legislativa, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e do deputado Fernando Filho (DEM-PE).
Na Câmara, o tema estava parado havia dois anos, em PL que teve como base o projeto conhecido como 10 Medidas Contra a Corrupção. Foi retomado e, no mesmo dia em que foi votada a urgência, foi também aprovado.
A norma passa a delimitar o que é crime na atuação fora do previsto de servidores e de integrantes dos Três Poderes. Estão aí incluídos servidores públicos e militares; integrantes do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, de tribunais e conselhos de contas.
O advogado criminalista Rogério Taffarello avalia que o debate a respeito da Lei de Abuso de Autoridade está fora de lugar. “A lei vigente é mal redigida. Num país que viveu duas ditaduras formalmente falando, a falta de accoutability sempre foi e ainda é um enorme problema democrático e civilizatório do Brasil. Dessa forma, a lei recém-aprovada visa corrigir esse histórico de irresponsabilidade, do ponto de vista técnico-jurídico, de nunca se ter responsabilizado agentes públicos. E arbítrios não faltam”, aponta.
Taffarello recorda que o debate voltou à esfera pública quando houve, em 2008, denúncia segundo a qual a Abin estaria grampeando ilegalmente diversas autoridades, dentre elas, ministros do Supremo. O caso não foi comprovado, mas mobilizou preocupações e desembocou no segundo pacto republicano, sob a presidência do ministro Gilmar Mendes na Corte. A proposta pretendia acabar com o “Estado policialesco”.
“Esse projeto é muito anterior à Lava Jato. Mas as corporações de agentes públicos que não querem ser responsabilizados por excessos usaram de uma propagandística de que é uma reação à Lava Jato. E esse discurso colou porque a operação tem apoio gigantesco. Mas o discurso tem uma dose menor de razão porque certamente boa parte dos parlamentares colocaram esse PL para andar como reações”, afirmou Taffarello.
Ainda enquanto titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro afirmou a senadores que a proposta poderia atrapalhar a operação. Naquele momento, Moro disse que a Lava Jato era sagrada. Ainda era o fim de 2016 e o projeto passou por transformações. Mas um trecho que já preocupava integrantes da magistratura e do MP foi mantido. O artigo 30 prevê pena de reclusão de um a cinco anos mais multa para autoridade que der início a processo sem justa causa fundamentada.
Ainda que alvo de críticas, a nova regulamentação do abuso de autoridade é tida como importante porque trata de condutas que afetam o funcionamento adequado dos mecanismos estatais de exercício de poder. Assim entende o criminalista Pierpaolo Bottini. “A inibição de prisões ilegais, postergações de atos essenciais, exibições públicas de investigados parece relevante em um país em que arbitrariedades desta ordem fazem parte do cotidiano.”
Por outro lado, o professor de direito penal da USP entende que a norma peca pela falta de técnica em alguns dos dispositivos, especialmente quando opta pelo uso de adjetivos, que exigirão do intérprete esforço para fixar parâmetros racionais e razoáveis para sua aplicação, evitando excessos que afetem o exercício legítimo das atribuições dos agentes públicos.
ADIs
Até o momento, são cinco ações diretas de inconstitucionalidade em trâmite no STF contra a lei. Todas elas estão sob relatoria do ministro Celso de Mello, cada uma questionando artigos específicos. As ADIs foram apresentadas por entidades representativas de juízes, promotores, auditores fiscais: AMB; Anafisco; Conamp, ANPR e ANPT; Ajufe; e Anfip.
Dos trechos que mais incomoda o MP, o artigo 30 define: “Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente. Pena: detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.” O artigo 9 incomoda especificamente a magistratura, já que estipula pena de um a quatro anos para quem “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”.
O texto estabelece pena para situações como: decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma “manifestamente descabida”. A medida, condução coercitiva, foi muito usada pela Lava Jato e foi declarada, quando para réu ou investigado para interrogatório, inconstitucional pelo STF em junho de 2018. Mas expressões como “manifestamente descabida” são exemplos do que as entidades apontam como abertas demais, de difícil entendimento.
Já o artigo 36 tipifica como crime “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.
Alguns juízes, mesmo antes de a lei entrarem em vigor, num ato político, negaram penhoras online que seriam cabíveis sob o argumento de que poderiam ser punidos. Já em Senhor do Bonfim, na Bahia, um juiz criminal deixou de converter duas prisões em flagrante em prisões preventivas argumentando que poderia vir a infringir os termos da ainda não válida Lei 13.869/19
As ações no STF incluíam pedidos de liminares para impedir que a legislação comece a ter efeitos antes que a Corte avalie a constitucionalidade dos artigos impugnados. Quanto ao texto, as críticas giram em torno da subjetividade de alguns trechos.
O presidente da autora de uma das ações, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes, explica que a lei não foi impugnada por eles como um todo, mas em alguns pontos específicos. “Entendemos que cinco artigos podem colocar em risco a independência da magistratura e criminalizar a atividade jurisdicional.”
A Ajufe juntou à ação parecer do ministro aposentado Ayres Britto, que também defende a inconstitucionalidade da lei na parte em que estabelece controle criminal da atuação de magistrados. “A atividade já é controlada por meio de recursos, no âmbito de cada processo, e administrativamente”, aponta Mendes. Ele cita as corregedorias. No caso de um juiz federal de primeira instância, por exemplo, ele está sujeito a três corregedorias.
O decano, no entanto, costuma demorar a analisar cada caso. Celso de Mello tem a tradição de liberar poucos processos ao plenário e se dedicar a cada um deles com tempo e atenção. Ele não proferiu decisão sobre o pedido cautelar.
A Corte entrou em recesso na última sexta-feira (20/12) e retoma o funcionamento normal no início de fevereiro, com a lei já em vigor. Apesar do pouco tempo entre a apresentação das ADIs até o início do recesso e da rotina que mantém, Celso de Mello recebeu os autores, bem como, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que ingressou no processo como amicus curiae.
Há o receio de que qualquer cidadão ou advogados possam usar a nova norma para combater decisões e medidas das quais discordem ou que os atinjam de alguma forma. Apesar da preocupação das entidades representativas, a Lei de Abuso de Autoridade pode ter efeitos mais simbólicos que concretos — efetivamente condenar e prender agentes públicos.
Primeiro porque é o próprio MP o responsável pelas ações penais. Os crimes de abuso de autoridade são de ação penal pública incondicionada. Se o MP não propor a ação no prazo legal, a vítima pode propor uma queixa em até seis meses, contado da data em que esgotar o prazo para oferecer a denúncia.
Na sequência, são os magistrados que processam e julgam os casos. Dessa forma, o corporativismo dificultaria o andamento de qualquer acusação — assim como já se observa, conforme dizem alguns analistas, nas respostas dadas aos casos que chegam ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Por outro lado, ser alvo de ação penal, por si só, já traz um peso social, político e para as carreiras dos membros do Judiciário e MP. Juízes se preocupam que advogados passem a apresentar ações para criar situações de suspeição. “Deveria ter passado por um debate adequado, especialmente diante de uma renovação tão grande no Parlamento. De fato, o MP é o titular da ação penal, mas há espaço para a ação penal subsidiária. Isso pode gerar problema, com milhares de advogados entrando com ações contra juízes que deram decisões das quais discordam. Vai acabar como instrumento de pressão”, enfatiza Mendes.
Só a prática forense irá responder a essas suposições e responder às perguntas sobre o limite entre o que é o crime de abuso e a independência do juiz. do jutiçabrasil e jota.